quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Crônica sobre Canindé no O Globo

Deu no blog da Maria Helena do Jornal carioca O Globo. Eis que surge uma crônica do autor Luiz Almeida sobre Canindé.


Na Estrada de Canindé

Fazia uma viagem noturna sozinho, pilotando minha motocicleta Honda Sahara NX350 por esses sertões do Ceará. Era tarde da noite, por volta das onze horas, quando saí da casa onde colegas de trabalho se reuniram para um jantar. Na solidão do capacete, eu rodava de moto na estrada deserta, na noite escura sob um céu pleno de estrelas.

Depois de rodar por algum tempo, dei uma paradinha básica no acostamento, luzes apagadas, um pipizinho, respirar o ar fresco com cheiro de mato e admirar aquela imensa abóbada celeste enfeitando a noite nordestina. Eram tantas estrelas que o céu ficava prateado. Como a gente se sente pequeno diante da imensidão celestial... Nas grandes cidades um céu assim não existe mais. A iluminação e a poluição do ar encobrem esta maravilha que evoca reflexões profundas sobre a nossa existência, as origens e o sentido da vida... Deixamos de olhar o céu noturno. Será que é por isso que o mundo deixou de ter grandes filósofos? Êpa, isso já é coisa para outra história.

Como dizia, eu fazia uma viagem noturna solitária pela BR 222, voltando de Canindé, aonde eu tinha ido a trabalho. Era preciso muita atenção, pois muitos animais saem da fria mata em busca do calor que ainda fica no asfalto. A minha velocidade era em torno dos 80km/h ou um pouco menos.

Canindé é uma cidade situada a 170km de Fortaleza, cuja principal atividade é o turismo religioso. Os devotos de São Francisco fazem anualmente grandes romarias para lá e uma das tradições é seguir a pé, pela estrada, pagando promessas ou pedindo uma graça. Na época das romarias é comum se vê pessoas vestidas com o hábito marrom franciscano caminhando pelos acostamentos descalças e alguns até carregando cruz nas costas. Na cidade, centenas de lojas vendem imagens, fitas e toda a parafernália dedicada ao Santo e ao Padre Cícero.

Quase não havia tráfego na estrada e eu seguia tranqüilo até que um carro surgiu do nada e se emparelhou com a moto. Achei aquilo estranho e, temendo tentativa de assalto, não fiquei para ver, acelerei forte e me distanciei. Aos poucos o carro se aproximou novamente e continuou me seguindo, aparentemente sem conseguir ultrapassar. Notei pelo retrovisor que ele ficava na faixa da esquerda e não me ultrapassava. Ora, era um carro potente e poderia me passar tranqüilamente. Que diabos seria aquilo? Eu me perguntava, já tenso e esperando o pior.

Éramos sós os dois na estrada. Eu estava sem saída e a perseguição continuava. Estava ficando arriscado brincar de ultrapassar e ficar na esquerda. Eu temia encontrar a qualquer momento, um jumento no meio da pista, cujas consequências de um atropelamento certamente seriam pior que um simples assalto...

Resolvi reduzir a velocidade para ver o que ia acontecer. Pronto, é agora, pensei. Adrenalina a mil. O carro ficou bem ao meu lado, na pista da esquerda. Eu encarei o vidro escuro da janela do passageiro como a dizer: O que foi? O que querem de mim? De repente o vidro se abriu e uma pessoa apontou-me uma... Não, eu nunca imaginei que um dia estaria na mira de uma pessoa, completamente indefeso, exposto, sem nenhuma reação possível.

Inesperadamente, de dentro do carro uma luz forte piscou quase me ofuscando. Logo em seguida consegui ver um sorriso como a se desculpar. O carro acelerou, tomou a frente e seguiu seu caminho. Ficou comigo a imagem de uma mocinha, com seus 12/13 anos, levando, na máquina fotográfica, quem sabe para uma coleção ou sei lá o quê, a foto de um assustado motociclista solitário no meio da noite na estrada de Canindé.

Luiz Almeida

(Fonte: Jornal O Globo)

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