domingo, 4 de outubro de 2009

Acolhimento e perdão

Nada de excomunhão ou castigo para as prostitutas. Acolhimento e perdão são gestos que devem ser praticados sempre, conforme o vigário da Paróquia de São Francisco das Chagas, em Canindé, frei João Amilton dos Santos. Para materializar a filosofia, a Igreja mantém projetos sociais na Zona do Baixo Meretrício (ZBM), a área da cidade onde fica a maioria das casas de prostituição.
Cursos de corte e costura, bordado, artesanato e pintura são oferecidos às famílias das mulheres envolvidas, em parceria com a Prefeitura de Canindé. O objetivo é apontar-lhes uma nova alternativa de vida. "Elas também são criaturas humanas, merecem sair disso, ter um emprego, se casar. A gente incentiva que elas tomem um empréstimo para terem alguma coisa para se manterem", diz.
O frade lembra que, há aproximadamente 20 anos, a própria Igreja incentivou as prostitutas a irem para o bairro Alto Guaramiranga, pois, até então, elas abordavam os clientes nas escadas da Basílica de São Francisco, chegando a atrapalhar as celebrações.
De acordo com a coordenadora do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Canindé, Gláucia Gondim, os cursos profissionalizantes são oferecidos a partir da demanda das prostitutas. Outra ação é o atendimento a mulheres que têm direitos violados, como exploração sexual ou violência doméstica. "A maior dificuldade é que elas rompam a barreira do silêncio. Existem casos de mulheres que já foram mortas em Canindé", lamenta.

Situação gritante

Em Juazeiro do Norte, a principal preocupação do vigário administrador da Basílica de Nossa Senhora das Dores, padre Paulo Lemos, é a exploração sexual de crianças e adolescentes. "Aqui, a gente não vê as crianças nas celebrações. Elas estão nas barracas, se prostituindo, fazendo todo tipo de coisa. Isso é algo gritante, que têm de ser resolvido, existe em toda romaria", denuncia.
Apesar da preocupação, o vigário reconhece que a prostituição, aliada a outros problemas, como a bebedeira nos arredores da Matriz, traz prejuízos. "É uma grande ferida. Todo esse conjunto de exploração atrapalha o sentido da romaria. As pessoas deveriam vir aqui para encontrar a paz", prega. Segundo Lemos, a paróquia busca, com a participação de jovens voluntários, identificar e aconselhar crianças e jovens desacompanhados dos pais.

ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA
Diversão sempre fez parte das romarias

A diversão sempre fez parte das romarias. Essa associação é incontestável, na opinião da socióloga e professora da Universidade Regional do Cariri (Urca), Paula Cordeiro, que estuda o tema em Juazeiro do Norte. Segundo a pesquisadora, durante os festejos, muitos romeiros chegam para suprir várias carências, e o sexo é uma delas.
"A cidade não deixa de ser o lugar onde se encontra (sexo) mais fácil que em pequenos povoados. As ´mulheres´ têm clientela garantida. O complicado são as ideias prévias de que romaria é coisa de fanático. Ninguém vem a Juazeiro passar 24 horas rezando", observa.
Conforme Paula, enquanto algumas pessoas vão à festa rezar, outras podem ir para paquerar, sobretudo as mais jovens. O perfil econômico modesto de muitos romeiros influi nessa carência pela diversão, segundo ela.
Para a antropóloga e coordenadora do Laboratório de Antropologia da Imagem da Universidade Federal do Ceará (UFC), Peregrina Capelo, a romaria tem duas conotações diversas: a apolínea (relativa ao deus Apolo, que se caracteriza pela disciplina e pelo comedimento - caso de procissões, missas e demais eventos religiosos) e a dionisíaca (relativa a Dionísio, deus da alegria e do vinho - o lado profano, incluindo o lazer).
"A prostituição é um bem comercial, um produto a ser vendido, como uma camiseta... Tem valor de troca e valor de uso para quem vai consumir", diz. O profano não é a antítese do sagrado, diz, pois ambos se manifestam no comportamento e no imaginário das pessoas de uma mesma cultura: "Toda sociedade tem o lado institucional e o lado onde essa moralidade é posta em xeque".

FIQUE POR DENTRO
Comércio, bebidas, pedintes e o pecado
O profano se manifesta de várias formas nas romarias. Há consumo de bebidas alcoólicas em bares, barracas, praças e até durante eventos religiosos. O comércio toma conta das calçadas, com a venda, desde imagens sacras, até DVDs piratas. O número de pedintes cresce, pois vários se deslocam entre as romarias para obter mais dinheiro. Segundo o frei João Amilton, os casos são diferentes e "diante de Deus, cada um se responde". "Pode ser que as prostitutas estejam no Céu e nós, santinhos, no inferno". Sobre a bebedeira, diz que as pessoas têm o direito de se divertir, mas sem exagerar e prejudicar as outras. Quanto aos pedintes, reconhece que há comodismo de alguns, mas atribui o problema à pobreza e à desigualdade social. Em relação ao comércio, o padre Paulo Lemos admite que não é possível evitá-lo, mas sim organizar melhor o espaço. Ele defende, ainda, a proibição da venda de bebidas alcoólicas, mas não de forma radical

ENTREVISTA-Régis Lopes*
"A religião excluiria totalmente as coisas do mundo só se os devotos não fossem humanos"

Desde quando o profano faz parte das festas religiosas?
Qualquer tipo de festa religiosa não exclui o lado profano. Falar em profano significa até um certo preconceito. É como se a religião estivesse separada da vida. Se a festa é ligada à romaria, e a romaria faz parte da vida, não necessariamente esse tipo de festa vai significar um isolamento de tudo o que existe na vida. É como acreditar que o religioso nunca vai matar ninguém, pecar, errar... A religião não é simplesmente no domínio do absoluto. Sempre esse absoluto se dá através do corpo, de algo que é relativo: a carne, o corpo. A religião excluiria totalmente as coisas do mundo só se os devotos não fossem humanos.

Como situar historicamente essa ligação na humanidade?
Desde o momento em que se começou a inventar determinadas regras para o contato com o sagrado, a regra já pressupõe a exceção, de modo que, na prática da religiosidade, as coisas sempre se misturaram. A religião nasce com o profano porque as pessoas que praticam a religião são seres humanos. Existem variadas formas de repressão, que mudam de acordo com o tempo. Na Idade Média, por exemplo, a Igreja Católica tinha uma posição mais solta. Com a Modernidade, tem maior repressão à bruxaria. A inquisição funcionou muito mais na Idade Moderna do que na Idade Média. Depende do tempo, do espaço, de como os líderes religiosos, os dogmas reprimem ou aceitam certas manifestações do corpo.

Em sua pesquisa sobre a Romaria de Juazeiro, o senhor encontrou a busca pelo sexo?
Encontrei uma busca pela festa. Se o sexo vem junto com a festa, a torna mais animada. Não encontrei nenhum romeiro que vai para os lugares de romaria por causa da prostituição, até porque prostituição tem em todos os lugares. Agora, no meio da animação, que tem comida, bebida, a noite, o escuro, em todo lugar que tem grande circulação de gente, há certa tendência à prostituição.

O fenômeno da prostituição em festas religiosas é aceito ou negado socialmente?
A prostituição é um fenômeno sempre mais ou menos escondida. As pessoas que trabalham na prostituição sempre trabalham na penumbra, nunca é uma manifestação pública. Porém, não tem muita diferença entre a prostituição nos lugares de romaria e em outros lugares. Apenas isso cria um certo estranhamento, como se esses lugares de romaria fossem lugar de uma pureza idealizada.

O profano ajuda a deixar o sagrado mais sagrado?
Acho que não. Uma romaria tem vários momentos: a oração, a penitência, a conversa, os diálogos, o reencontro de amigos, a chegada, a partida... Em Juazeiro, existem lugares mais sagrados que os outros. Na frente do túmulo do Padre Cícero tem uma carga de sagrado maior. De noite, durante a festa, a animação faz parte da romaria, não é mais aquela vivência intensa do sagrado. Isso a gente vê em Canindé também. Romaria não é ritual único. No decorrer do sagrado, o profano se manifesta. O sagrado não elimina o ser humano. É o corpo que vai a Juazeiro, a pessoa com a sua vida humana. A romaria não é feita somente de espíritos desencarnados; tem roubos em romarias; uma pessoa pode matar a outra. Todos os males e crimes que existem na sociedade, existem também nas romarias porque o romeiro não é homogêneo. A romaria é um fenômeno que nunca conseguiu ser controlado totalmente pela Igreja. Uma coisa é o devoto dentro da igreja - aí dá para controlar mais ou menos -; mas a romaria não é só ir para a missa. Circulando pela cidade, as coisas acontecem.

*Prof. de História (UFC), mestre em Sociologia e doutor em História

ÍCARO JOATHAN
REPÓRTER
(Fonte: Diário do Nordeste Online)

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