A história da família de oito filhos, moradora do assentamento Vida Nova Transval, em Canindé, se mistura à da seca cearense. Isso porque, apesar de fazer “de tudo um pouco”, o patriarca da família ainda conduz com os dois filhos homens a plantação de feijão, macaxeira e milho. Dependendo há anos de inverno bom, e com as dificuldades de abastecimento, veio a ideia de trocar o trator utilizado pela comunidade por uma moto. A máquina agrícola pensada pelo filho, Antônio Tiago Souza dos Santos, 26, é mais econômica, agride menos o solo e ainda pode ser utilizada por qualquer pessoa - “seja jovem ou idosa”, garante ele.
À primeira vista, a "motocultivadora" lembra um triciclo, pois tem dois grandes pneus acoplados em sua traseira. O diferencial fica justamente por conta da grade de ferragens afiadas, que servem para preparar e arejar a terra, garantindo maior absorção de água. Um trabalho que o trator do assentamento gastaria oito litros de diesel, por hectare, é feito com apenas dois litros de gasolina pela 'engenhoca’. O que equivale a uma economia de R$ 19,12, pelo preço da gasolina (R$ 4,04) em relação ao diesel (R$ 3,40) no município cearense - dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis de 24/09 a 30/09.
“Quando eu entrei na faculdade para fazer Engenharia (Civil), fiquei meio sem conseguir ajudar meu pai nessa questão de trabalho braçal, com a lida no campo. Tinha que passar o dia estudando, saía daqui 14 horas da tarde e chegava (de volta) em Canindé às 2h da manhã”, lembra Tiago. A rotina desgastante de estudos em Fortaleza acabou trazendo uma ideia, quando o rapaz fazia estágio em uma fábrica de cerâmica da cidade. Foi lá que o inventor viu uma carroça acoplada em uma moto e percebeu a oportunidade de adaptar uma cultivadora no veículo.
Em 2015, com o irmão Francisco Cleiton dos Santos, 32, e o pai, Aloísio Germano dos Santos, 57, comprou uma moto por R$ 1300. A experiência de mecânica ensinada pelo pai serviu para eles montarem o equipamento manualmente, mas devido à seca, o plano foi testado de fato este ano. “Não adulterou quase nada na característica da moto, pode tirar a cultivadora e usar a moto normal. No finalzinho do ano, a gente quer montar logo a plantadeira, porque assim que terminar de preparar a terra começa a plantar. A diferença é porque a cultivadora prepara a terra, e o plantador já é para jogar as sementes. Queremos a máquina para quatro funções: preparar a terra, plantar, pulverizar e para trazer os alimentos para casa (em uma carroça acoplada) ”, frisa Tiago.
Entre os filhos de Aloísio, há uma filha formada em Artes, uma médica, uma técnica de enfergamem e uma jornalista. Tiago teve que parar o curso de Engenharia Civil porque ficou doente, mas pretende retomar a formação. O irmão Cleiton trabalha como motorista, mas também sabe, assim como Tiago, o ofício de pedreiro. Juntos, os três construíram a casa onde a família mora. A mãe, Raimunda Sousa dos Santos, 57, já foi professora de ensino primário e também é dona de casa.
Peleja
As condições de trabalho na agricultura familiar são marcadas pela resistência do corpo, esperança de chuva e também aposta de captação de água. Este ano, Aloísio e os filhos cavaram dois poços nos hectares de terra deles na Agrovila - com 60 e depois 108 metros de profundidade. Gastaram R$ 14 mil que juntaram com dificuldade, mas deu "poeira" (sem condição de puxar água) .
"Eu tava vendo que ia perder as plantas lá, que eu já tinha perdido umas laranjeiras, goiabeiras, umas coisas assim, mangueira. Aí fui e disse: rapaz, 'vamo' ver se nós cavamos um poço. Só que deu errado... tá bom, né", diz o patriarca encerrando a entrevista, quando fica emocionado. Antes de lembrar os poços, o agricultor, mestre de obras e motorista conseguiu contar sobre a trajetória desde a chegada no assentamento, em meados de 1996.
Ele fala de quando, anos atrás, teve prejuízo de cerca de R$ 50 mil com um veículo comprado para transportar alunos. "Trabalhava carregando os alunos, mas infelizmente o pior foi isso aí. A gente trabalhava na intenção de receber, e eles enganavam a gente. Uma pessoa de família, que entra num negócio desses. Só dá se for pra classe deles lá, que vive da política, que na política tem para ‘tudo enquanto’, né. Onde é essa justiça que ainda existe, que eu não conheço? Os que colocaram na Justiça, hoje não receberam nada. Não vale a pena, deixa lá, porque eles não pagam porque não querem pagar, porque o recurso tem", disse.
Mesmo naquela época de falta de pagamento e trabalho no roçado - o qual nunca largou-, encontrava tempo para trabalhar de graça na construção da capela de Santo Expedito, dentro do assentamento. "Nós estamos amurando agora, devagarzinho. Eu faço parte da religião, mas não sou fanático. Eu vou à missa e tudo mais, não sou contra quem vai, e digo que o bom é a gente ter Deus, nosso superior".
Antes de 2009, a comunidade chegava a produzir três mil sacas de milho, por exemplo, conforme Aloísio. Em seu roçado, conseguia uma média anual de 120 sacas, quantidade que diminuiu gradativamente com a seca. A produção de milho da comunidade inteira despencou para 300 sacas, com algumas famílias sequer conseguindo debulhar o milho. "E aqueles que não usaram o trator não produzem é nada, plantaram muito, mas a terra ficou muito ácida, dura, porque a água parece que não penetrava. Eu mesmo cheguei a produzir ano passado, se eu não me engano, 26 sacas de milho. Esse ano, não bati todas, porque ‘tava’ tirando para dar aos animais a espiga, com palha. Acho que esse dá umas 20 sacas”.
Expectativa
"Aí eles inventaram de fazer essa engenhoca aí, parece que tá dando certo", aponta Aloísio quando observa os filhos, durante a demonstração da ''motocultivadora''. "A gente não tinha condição de ir para oficina, a gente mesmo que montou uma oficina. Comprou chave, equipamentos, e a gente foi fazendo aos poucos. Desenvolvemos uma artimanha da mecânica do carro, das máquinas", explica Tiago.
Com a ''motocultivadora'', além da economia de combustível, a dupla de irmãos comemora vantagens de tempo e dinheiro com serviços extras. A limpeza de um terreno exigia da família a contratação de duas pessoas, com diárias de R$ 50 cada - uma atividade que poderia durar dois dias. "E não dava a produção que a moto dá para limpar o chão e afofar aterra. (A máquina) fez em 20 minutos, não gastamos nem R$ 3. Não precisa ficar correndo atrás de gente, porque é difícil essa mão de obra boa ter tempo", frisa o inventor.
Com um advogado amigo da família, Tiago já iniciou alguns processos para patentear sua máquina, que já lhe rendeu mais tempo para voltar aos estudos. “O pessoal aqui ficou um pouco surpreso, porque é uma inovação. O pessoal só crê no que vê, mas acho a partir do próximo ano vão surgir algumas encomendas”, comenta. Com Cleiton, ele estima que uma nova motocultivadora seja produzido em até 30 dias.
Fonte: O Povo